terça-feira, 29 de março de 2011

Sentido meu


Simplesmente caminho.
E, quando me indicam por onde ir,
Sorrio e olho,
E sigo em sentido contrário,
Dando um passo em frente
Sem repisar atrás…

(manuel moraes) || 2011-03-29

quarta-feira, 16 de março de 2011

Macário, o guardador...

Era uma vez um menino, ainda bambino, que tinha medo de um cabide de pé. Ele, o cabide Macário, passava os dias e as noites no seu cantinho preferido, bem pertinho das escadas. Nele repousavam chapéus, casacos, estolas, cachecóis, e tudo mais que se pudesse pendurar nos seus braços fortes e longos e muito esticadinhos, da família e dos amigos que, de vez em quando, apareciam e enchiam de vida e alegria a casinha onde o menino morava.
O menino, ainda bambino, percebia que o cabide Macário era muito alto, quase do tamanho de um gigante - tão grande que era obrigado a torcer o pescoço quando o olhava de perto; era parecido com aqueles seres enormes que habitavam as histórias que a sua Mema lhe contava à noitinha, sempre ternurenta e sorridente, no seu quarto povoado de brinquedos e fantasia. Por isso, o menino sentia medo do cabide Macário, por ele ser tão grande, sobretudo quando sozinho, no silêncio da manhã, ao descer as escadas, tinha de passar pertinho dele.
Macário era um cabide guardador de meninos, coisa que tinha descoberto cedo, pois desde criança adorava meninos – e quando lhe perguntavam o que ele queria ser quando fosse grande, ele respondia de forma adulta e decidida: quero ser guardador de meninos!
Mas o menino, ainda bambino, não sabia que Macário, o cabide que tanto o assustava, adorava crianças, e que, de tanto amor, também o adorava a ele, o seu menino-bonito, protegendo-o do escuro da noite, da trovoada que explodia e rasgava os céus nos dias de tempestade, dos barulhos escondidos nas paredes e no soalho de madeira, e de outras coisas igualmente aterradoras...
Macário andava triste: assustava, sem querer, o menino do seu coração. Queria fazer tudo para ser seu amigo e percebia que, somente roubando-lhe o medo, o menino deixaria de fugir dele; hum… roubar-lhe o medo, bela ideia, sim, claro, pensava Macário, é isso, vou roubar-lhe o medo, mostrando-lhe que sou seu amigo. Afinal, eu sou o seu guardador, como um pastor da serra que guarda o seu rebanho.
Um dia, pela manhãzinha, Macário viu o menino no topo das escadas, receoso e hesitante. Pela primeira vez atreveu-se a falar-lhe – os humanos não aceitam bem a ideia de um cabide falante – e disse-lhe:
- Olá, bom dia! Chamo-me Macário e quero ser teu amigo. Tenho vivido sempre contigo, sabes, vi-te nascer e crescer, hoje já és um rapazito, não tarda nada serás um homenzinho, mas, repara bem, nunca conversámos ou brincámos, e, porém, vivemos juntos há tanto tempo.
O menino surpreendido - nunca tinha falado com um cabide - deu um passo, depois outro, e ainda outro, e parou a meio da escada; de seguida, algo receoso, ganhou coragem e retorquiu:
-. Bom dia senhor cabide! Não sabia que te chamavas Macário. Que nome tão giro! Foi a tua mãe que o escolheu?
- É, foi a minha mãe, respondeu o cabide. E continuou, sabes, é nome de marinheiro. Eu ia com a minha mãe à praia quando era menino. E como eu adoro o mar, a minha mãe escolheu para mim um nome de marinheiro.
- Que nome divertido! É tão catita! Tens a certeza que é nome de marinheiro, duvidou o menino, sem o esconder.
Macário sorriu e volveu amistosamente:
- Sabes, são coisas de mãe: eu disse-lhe que gostava de ter um nome de lobo-do-mar, de um daqueles marinheiros que fazem do mar a sua casa, e a minha mãe contou-me a história do pescador Macário, das suas aventuras e desventuras nesse grande lago salgado, cheio de tesouros escondidos e belezas nunca vistas. Macário era pescador, vivia do mar, dele retirando o seu sustento. E assim fiquei Macário para o mundo.
O menino, cada vez mais interessado na conversa do cabide Macário, sim, ele agora tinha um nome e até uma mãe que o criara, como ele, perguntou:
- Diz-me: se querias ser marinheiro, então porque estás aqui na minha casinha e passas o dia aí nesse cantinho, quieto e em silêncio?
- Boa pergunta. Tem a ver com a minha profissão, com aquilo que eu faço na vida; tenho nome de marinheiro mas sou um guardador de meninos, e fui escolhido para te guardar: a tua Mema, há algum tempo, encontrou-me numa loja da cidade e convidou-me para viver na tua casinha e tomar conta de ti. E eu aceitei, muito feliz.
- Ah… Mesmo assim acho-te muito sossegadinho e inofensivo. Sobretudo, para quem queria ser marinheiro e navegar em águas fortes e vivazes… Sabes, ontem à noitinha, enquanto a minha Mema me contava uma história, falei-lhe do medo que sentia sempre que tinha de passar por ti, em especial por causa desses chapéus, chapeletes e bonés que tens na cabeça – e pedi-lhe para tos tirar.
- Não e não! Não lhe peças isso! Por favor, percebe que quero ser teu amigo e para isso preciso de uma cabeça, objectou Macário veementemente.
- Tu, que és um cabide, precisas de uma cabeça? Para quê?
- Sim, claro. Para pensar! E aprender! Senão repara: sem cabeça não saberei fazer contas ou ler histórias ou sequer conversar contigo. Ou pior, brincar contigo. Tudo coisas tão boas! Como posso ser teu amigo se não criarmos laços fortes e afectos eloquentes entre nós, se não nos interessarmos pelas mesmas coisas, brincadeiras e outras coisas do género?
- És capaz de ter razão, concordou o menino. Mas, digo-te, estou confuso: que brincadeiras podem os meninos partilhar com um cabide?
- Todas, confirmou Macário.
E, entusiasmado, continuou:
- Por exemplo, gostas muito de assobiar, não é? Então, quando te apetecer, chegas-te perto e assobias para mim algumas melodias, claro, as tuas preferidas. E eu, ouvindo-te com muita atenção, dir-te-ei se assobias bem, ou então como deves fazer para silvar melhor, como se fosses um canário a soltar os seus cantos melodiosos.
- A sério? Ensinas-me a assobiar? Uauuuu!
- Sobretudo ouço e dou-te muita atenção. Sentas-te junto a mim, naquele banquinho castanho, depois assobias e enches a nossa casinha de música, reafirmou Macário.
- Que bom! E também jogas às cartas comigo? Quem é o mais forte, quem é Macário? E também atiras os meus piões à arena, ali, naquela caixa de cartão, como eu tanto gosto de fazer, procurou saber o menino, que sem dar por isso, já não nutria medo de Macário, o cabide-marinheiro-que-falava-e-que-queria-ser-seu-amigo.
Mema, que a tudo assistira em silêncio, sorriu de felicidade. Afinal, o seu menino-bonito ganhara um amigo para a vida…
Porque sonhamos e somos e queremos, o sol beija todos dos dias o nosso rosto, a nossa alma inflama-se de amor pelos outros, e não desejamos mais esconderijos ou medos. E, um dia, em êxtase, clamamos: deixei de ser louco no dia em que, com as pedras que encontrei no caminho, arrolhei a entrada dos meus esconderijos e afastei os meus medos!

manuel moraes || 13.03.2011