segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Sou coisa

Sou coisa que quer ser outra coisa,

Para voltar a ser coisa.



Sou coisa que quer ser outra coisa,

Algo mais que outra coisa,

Para voltar a ser outra coisa.



Sou outra coisa que deixou de ser outra coisa,

Para voltar a ser coisa.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A estória de uma rã que pensava que era um sapo

O sapo desta estória, que ora começa e que não sabemos como acaba, era, na verdade, uma rã que pensava que era um sapo.

Era uma rã que parecia um sapo, curioso e travesso, de feitio às avessas porque se vestia de verde ou de vermelho, consoante tinha vontade de brincar ou de zangar-se. Sim, porque se ele gostava muito de brincar também adorava barafustar. Era brincalhão e detestava que o chamassem “rã”, porque era nome de menina... E ele era um menino, já crescidinho. Era uma espécie de sapo-camaleão, ora divertido ora zangão.

Vivia num pequeno charco, no sopé de um vulcão, que um dia, irritado com tanta discussão, abriu a bocaça e fogo cuspiu, cobrindo de repente o seu charco todo. Por isso, o sapo-menino-que-era-uma-rã fez a mala e partiu pelo mundo à procura de uma nova casa, que sonhava com quarto e sala, afinal uma casa de gala.

Pobre sapo, gostava tanto de bate-papo e via-se de trouxa às costas, como um trouxa à procura de um novo charco para habitar. E não havia charco para ele em milhões e milhões de charcos que visitou, porque ou eram pequenos ou estavam ocupados. Afinal, ele queria um charco com quarto e sala, um charco de gala, não queria um charcozinho qualquer… Um charco com um quarto para dormir e com uma sala para brincar.

Andou e andou, saltitou pelo mundo fora, tanto procurou que de aspecto mudou: já não parecia um sapo, crescia e crescia, e cada vez mais uma rã parecia.

Enquanto caminhava e saltitava, decidiu «Já que vou arranjar casa, quero casar!» Mas não havia rã bonita, que o encantasse e que com ele casasse. Diziam-lhe «Bom dia!» e ele respondia maldisposto «Não sou uma rã, sou um sapo! E quero casa e casamento. E não encontro casa nem casamento!»

Até que uma doce voz lhe disse «Quanto a casa não sei, mas se queres casar, casa comigo.» Ao que ele replicou «És uma rã e eu sou um sapo, somos diferentes e tu não és bonita…» Logo contestou a rã-menina «Sou tão bonita como tu, somos duas rãs, uma rã-menina e uma rã-menino que pensa que é sapo…» E continuou «Somos feitos um para o outro, não importa que penses que és um sapo, casamos na mesma e vamos ser muito felizes…»

Casaram-se, a festa foi de arromba, e foram morar para um novo charco acabadinho de fresco: nele flutuavam sobre a água cristalina dois nenúfares viçosos: um belo quarto, arejado e confortável, e uma sala ampla com uma vista maravilhosa para o charco.

E assim acabou a estória da rã que pensava que era um sapo e um dia passou a ser uma rã que gostava de ser uma rã…



manuel moraes || 02.12.2011

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Cofre astronómico


Como um globo de ouro forjado,
Pelas mãos de um deus invisível,
- Também ele inventado,
E hoje uma âncora descaída,
Cada vez mais além e solta de estrém -,
Brilha e brilha, que de tanta luz declina
Até se tornar irreconhecível:
Eis o mundo!


Enganos e falácias – tanta poeira! -
           Que a degenerescência é veloz, e tão feroz,
Que a todos arrasta, que tudo leva e afasta,
Cada vez mais arabesco, cada vez mais babelesco,
Eis o mundo!

Numa viagem de minhoquinha bichoca
Às arrecuas dos tempos,
Indo ao ponto em que as ideias emagrecem.


E neste mundo de toca,
De minhoquinha bichoca,
Uma espécie de caldeirão,
Ou um interior de escuridão, nos espera!


É isto. Conseguimos!
Flutuamos num imenso e negro oceano,
Algo tão grande,
Que o acabamento está à vista.


Se queremos ir além, temos de ir além!
Dando o passo, acertando a marcha,
Demolindo e demolindo e demolindo.


E depois? Ah! Depois…
Estará muito mais frio.

(manuel moraes) || 2011-10-26

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Pedras

Deslembrado e breve,
Esqueço-me de viver.
E de cabeça-leve
Sigo, indo a arder…

E assim breve e deslembrado
Paro para me espelhar.
E para recuidar,
Às pedras sou afeiçoado.

Apanho-as:
Na vagem de um rio-selvagem,
Ou no excesso de uma floresta-recesso,
Ou no lado leste de uma montanha-agreste…

E com elas - as minhas pedras belas - a meu lado,
Da força e da razão e da resistência
Farei os alicerces e as paredes e o telhado
Da minha exsudada residência.


(manuel moraes) || 2011-09-08


segunda-feira, 4 de julho de 2011

Paizinho

Partiste. Hoje.



Ao dia primeiro, senhor ribeiro,

Desaguaste,

Descendo o rio traiçoeiro...

E enfim paraste:



Molhando gota a gota

O oceano inteiro!



Enfeitando a lágrimas-de-sangue

O oceano inteiro!



Ah!, agridoce senhor ribeiro:

Foi teu o teu pequeno mundo,

E hoje é teu o teu grito mais profundo:



- Livre e sozinho, fiz um oceano inteiro!

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Ôhá-ôhé gente

Ôhá-ôhé:

Gente (sou) multiplicada ao sombrio recanto,

Aramada,

Aquém da contínua cortina farpada;

Como zero sobrevive,

E como zero acabará!



[de rosto impassível, varrendo com mesuras o pó concedido pelas botas lustradas]



Ôhá-ôhé:

Gente (sou) diminuída ao sombrio recanto,

Trevas… ôhé-ôhé-ôhé,

Trevas… ôhé-ôhé-ôhé,

Como zero sobrevive,

E como zero acabará!



[de rosto melífluo, servindo, por vintém, como lacaio de libré alguém todo-poderoso]



Ôhá-ôhé:

Gente (sou) somada ao sombrio recanto,

Opressa,

De mão à copiada palavra professa;

Como zero sobrevive,

E como zero acabará!



[de rosto inominado, inautêntica, vendo nada, sabendo nada, sentindo nada]



Ôhá-ôhé:

Gente (sou) dividida ao sombrio recanto,

A tortura… ôhé-ôhé-ôhé,

A tortura… ôhé-ôhé-ôhé,

Como zero sobrevive,

E como zero acabará!



Ôhá-ôhé:

Gente ensombrecida,

Olhando para nada

(enobrecida);

Calando a voz por nada

(esquecida);

Pensando a troco de nada

(empobrecido).



Como zero sobrevive,

E como zero acabará!





manuel moraes || 09.08.15




quarta-feira, 8 de junho de 2011

Quanta fome...

Numa noite fria

Olhei em volta

E vi alguém deitado no chão.

Não vi Homem, não vi pessoa!



Vi uma nódoa branca

Colada ao corpo que sofria.

A fome nos seus olhos encovados e tristes e frágeis.

Olhos que brilhavam como estrelas doces e dóceis,

Em rostos cheios de ausência luminosa…



E pensei

E achei belos

Os seus rostos, os seus sorrisos…



Como são dignas

As crianças e os velhos e as mulheres!



Quem tem fome sequer sobrevive.

Quem tem fome definha e sofre.

Quem tem fome vive morrendo e morre!





A nódoa branca, essa não.

Não sente ternura ou compaixão,

Não escolhe raça ou religião,

Não mostra vergonha ou razão…



Quanto ao resto, que fazer?

Cinismo? Cepticismo? Indiferença?

Não!!!!



Acenda-se a luz!

Basta um clique…



Haja amor entre os Homens

E a nódoa branca,

Sombria e ardente e infeliz,

Será pó, cinza e nada!

Basta um simples gesto

Zzzzzzzzzzzzzzzzzzztttttt!

E fome jamais!





(manuel moraes) || 2010-11-11

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Apenas lágrimas

Quanta vez chorei

        (de cor não as sei)

        Lágrimas de amor.


        Quanta vez prenhe de dor!

        Caíram de mim, delicadas

        E de maneira menina acanhadas...


        Tão-somente,

        De mim fizeram gente!





(manuel moraes) || 2011-06-01

quinta-feira, 26 de maio de 2011

O pardalito Nico

A luz brotou, depois suavemente se escondeu, e dali se foi. Breve era o dia. Todos os dias. Sucedia à luz solar, branca e cheia de brilhos, um sombreado lusco-fusco, que embalava compassadamente o tempo e trazia tantos mistérios - embrulhados em papel-de-luas - aos sonhos de um pardalito, ainda bambino: sentia que ela - a luz viva, visível, preciosa e única - partia devagarinho, como que a dizer-lhe “adeus e até amanhã, meu querido pardalito”; e nada podia fazer, a não ser sonhar e sonhar e sonhar, e esperar vê-la de novo na alvorada seguinte, que sempre viria, sabia ele. Ah! Sonhos de pardalito: magia e magia e magia...

Ao sentir que a noite se aproximava, o semblante de Nico, reflectia a agitação de não querer estar sozinho quando o dia se escondia: como se estivesse num palco, sob as luzes da ribalta, olhando, saudoso, a fantasia que partia: sentia a falta da voz açucarada de sua Mema, como qualquer pardalito que adora voar livremente pelos céus em busca de aventuras e supõe encontrar, ao descer das nuvens, o seu ninho fofinho, sob lençóis de estrelas: - Que bom, pensava, o tecto da minha casa é o mais bonito do mundo! Tantas luzinhas, recortadas como lampiões suspensos no infinito de um mundo esplêndido e nunca visitado: nunca ninguém lá fora, mas decerto um dia, acreditava ele, partiria em busca do segredo do mundo, saltitando pelas estrelas, uma a uma e ao pé-coxinho.

Finalmente, ao crepúsculo, Nico pousou na árvore que era a sua casinha. Soprava um leve vento e os ramos oscilavam como se felicitassem o seu regresso depois de um dia de cheio de aventuras, bem vivido e muito saboroso. De bico aberto, piava de fome. Como sempre, a sua Mema, atenta e preocupada, tinha o jantar preparadinho para o seu filhote: hoje comeriam sementes de girassol.

- Uau! Que bom! É a minha comida preferida. Oh Mema! És tão querida. Adoro-te!

Enquanto jantavam, Nico, entusiasmado, depois de contar as suas aventuras mirabolantes, revelou que queria descobrir o segredo do mundo e que, para isso, um dia iria voar para muito longe, até ao infinito, muito para além das estrelas suspensas que enfeitavam o tecto da sua casinha...

- Mema diz-me: qual é o segredo do mundo?

Sábia, a sua Mema respondeu: - O segredo do mundo, Nico, é o segredo da vida!

O pardalito ainda bambino, estupefacto, retorquiu: - E qual é o segredo da vida?

- Ah! O segredo da vida é a liberdade: é escolher o nosso caminho, aquilo que amamos e queremos muito fazer: é ser capaz de reconhecer o valor do amor e de todas as coisas boas da vida! E, sobretudo, é acender a luz quando escuridão nos envolve…

- Que coisa linda! E a liberdade onde está? Como posso encontrá-la e senti-la, perguntou curioso Nico.

- Ela está dentro de ti. É aí que a deves procurar - volveu a sua mãe, sorrindo com ternura. Mas, agora temos de ir dormir, está na hora…

Nico, bem-disposto, ripostou: - Posso dormir contigo no teu raminho-quartinho? Assim, muito aconchegadinho ao teu corpinho quentinho…

Dito isto, ambos foram para o raminho-quartinho e, juntinhos, deixaram-se levar pelo sono que docemente os invadia.

De repente, zás-catrapás-catrapús: o raminho-quartinho da Mema partiu-se, e os dois, alvoraçados e meio estremunhados, bateram com energia as asinhas, procurando confusamente vencer a inércia que os levava em queda para o chão que se avizinhava segundo a segundo.

- Ai Mema! Ajuda-me! Ajuda-me! Gritou o pardalito assustado.

- Bate as asinhas, Nico. Com força, vá, vá! És capaz, bate as asinhas, como eu!

Nico, atrapalhado, bateu as asas com a força toda que tinha. Curiosamente, não sentiu medo: sentiu-se muito valente e contente, porque afinal era capaz de voar como a sua Mema lhe pedia.

Nico e a sua Mema conseguiram reerguer-se e voltar a outro raminho, aliviados porque não se tinham esborrachado no chão.

- Uf! Suspirou Nico. Que susto! Que se passou? Não percebo…

- Sabes Nico, já és um pardalito crescidote: o teu e o meu peso juntos são demasiado para os frágeis raminhos da nossa casinha. Por isso, o meu raminho-quartinho se partiu… Era muito fininho, por isso fraco para suportar o peso dos dois.

- E o que fazemos agora, inquiriu Nico tristonho. Significa que não podemos dormir juntinhos no mesmo raminho-quartinho?

- É isso mesmo. Temos de dormir cada um em seu raminho-quartinho, esclareceu Mema. Mas deves sentir-te feliz. Lembra-te do segredo da vida: a liberdade! E a liberdade é isso: ser capaz de dormir sozinho no teu raminho-quartinho, de não ter medo do escuro da noite quando te deitas para dormir, de fazer a caminha de manhã, de arrumar os teus brinquedos, de lavar a carinha e os dentes de manhã, de fazer os trabalhos da escola sem ajuda, enfim…

- Ah Mema! Percebo. Ser livre é fazer tudo aquilo que somos capazes e só pedir ajuda quando ainda não conseguimos sozinhos. É ser independente, é nunca desistir, é apanhar pedras e com elas construir castelos…

- É, tens razão Nico. É seguir o nosso caminho, sem enganos ou ilusões. É ser capaz de fazer, sem medos ou fantasmas. É amar, sem segredos ou reservas.

- Que bom Mema. Ensinas-me coisas tão giras… E o mais engraçado que aprendi é que é de pedra que se faz o mais encantador castelo: assim é o amor!

“A vida guarda inúmeros segredos, que importa descobrir; a vida tem ritmos que importa reconhecer; a vida revela em si tanta beleza, que importa saborear; a vida oferece-nos tudo, prazer e bem-estar, alegria e amor, se a compreendermos, se soubermos que a seguir à tempestade espreita a bonança, que depois da noite floresce o dia, que após a guerra se impõe a paz.”



manuel moraes || 24.05.2011

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Indo no momento

Amá-la e amá-la e amá-la,

Ah... Como é bom amar:

Tê-la,

E depois não tê-la:

Uma espécie de curva desfeita

Em contracurva à espreita

De uma recta direita,

Apenasmente, rectilínea feita…


Como uma vida

Que se sustenta vivida,

E depois se esquece:

E desaparece!


Que se vai,

Indo no momento que se esvai…


Amá-la e amá-la e amá-la,

Ah... Como é bom amar!



(manuel moraes) || 2011-04-15

terça-feira, 29 de março de 2011

Sentido meu


Simplesmente caminho.
E, quando me indicam por onde ir,
Sorrio e olho,
E sigo em sentido contrário,
Dando um passo em frente
Sem repisar atrás…

(manuel moraes) || 2011-03-29

quarta-feira, 16 de março de 2011

Macário, o guardador...

Era uma vez um menino, ainda bambino, que tinha medo de um cabide de pé. Ele, o cabide Macário, passava os dias e as noites no seu cantinho preferido, bem pertinho das escadas. Nele repousavam chapéus, casacos, estolas, cachecóis, e tudo mais que se pudesse pendurar nos seus braços fortes e longos e muito esticadinhos, da família e dos amigos que, de vez em quando, apareciam e enchiam de vida e alegria a casinha onde o menino morava.
O menino, ainda bambino, percebia que o cabide Macário era muito alto, quase do tamanho de um gigante - tão grande que era obrigado a torcer o pescoço quando o olhava de perto; era parecido com aqueles seres enormes que habitavam as histórias que a sua Mema lhe contava à noitinha, sempre ternurenta e sorridente, no seu quarto povoado de brinquedos e fantasia. Por isso, o menino sentia medo do cabide Macário, por ele ser tão grande, sobretudo quando sozinho, no silêncio da manhã, ao descer as escadas, tinha de passar pertinho dele.
Macário era um cabide guardador de meninos, coisa que tinha descoberto cedo, pois desde criança adorava meninos – e quando lhe perguntavam o que ele queria ser quando fosse grande, ele respondia de forma adulta e decidida: quero ser guardador de meninos!
Mas o menino, ainda bambino, não sabia que Macário, o cabide que tanto o assustava, adorava crianças, e que, de tanto amor, também o adorava a ele, o seu menino-bonito, protegendo-o do escuro da noite, da trovoada que explodia e rasgava os céus nos dias de tempestade, dos barulhos escondidos nas paredes e no soalho de madeira, e de outras coisas igualmente aterradoras...
Macário andava triste: assustava, sem querer, o menino do seu coração. Queria fazer tudo para ser seu amigo e percebia que, somente roubando-lhe o medo, o menino deixaria de fugir dele; hum… roubar-lhe o medo, bela ideia, sim, claro, pensava Macário, é isso, vou roubar-lhe o medo, mostrando-lhe que sou seu amigo. Afinal, eu sou o seu guardador, como um pastor da serra que guarda o seu rebanho.
Um dia, pela manhãzinha, Macário viu o menino no topo das escadas, receoso e hesitante. Pela primeira vez atreveu-se a falar-lhe – os humanos não aceitam bem a ideia de um cabide falante – e disse-lhe:
- Olá, bom dia! Chamo-me Macário e quero ser teu amigo. Tenho vivido sempre contigo, sabes, vi-te nascer e crescer, hoje já és um rapazito, não tarda nada serás um homenzinho, mas, repara bem, nunca conversámos ou brincámos, e, porém, vivemos juntos há tanto tempo.
O menino surpreendido - nunca tinha falado com um cabide - deu um passo, depois outro, e ainda outro, e parou a meio da escada; de seguida, algo receoso, ganhou coragem e retorquiu:
-. Bom dia senhor cabide! Não sabia que te chamavas Macário. Que nome tão giro! Foi a tua mãe que o escolheu?
- É, foi a minha mãe, respondeu o cabide. E continuou, sabes, é nome de marinheiro. Eu ia com a minha mãe à praia quando era menino. E como eu adoro o mar, a minha mãe escolheu para mim um nome de marinheiro.
- Que nome divertido! É tão catita! Tens a certeza que é nome de marinheiro, duvidou o menino, sem o esconder.
Macário sorriu e volveu amistosamente:
- Sabes, são coisas de mãe: eu disse-lhe que gostava de ter um nome de lobo-do-mar, de um daqueles marinheiros que fazem do mar a sua casa, e a minha mãe contou-me a história do pescador Macário, das suas aventuras e desventuras nesse grande lago salgado, cheio de tesouros escondidos e belezas nunca vistas. Macário era pescador, vivia do mar, dele retirando o seu sustento. E assim fiquei Macário para o mundo.
O menino, cada vez mais interessado na conversa do cabide Macário, sim, ele agora tinha um nome e até uma mãe que o criara, como ele, perguntou:
- Diz-me: se querias ser marinheiro, então porque estás aqui na minha casinha e passas o dia aí nesse cantinho, quieto e em silêncio?
- Boa pergunta. Tem a ver com a minha profissão, com aquilo que eu faço na vida; tenho nome de marinheiro mas sou um guardador de meninos, e fui escolhido para te guardar: a tua Mema, há algum tempo, encontrou-me numa loja da cidade e convidou-me para viver na tua casinha e tomar conta de ti. E eu aceitei, muito feliz.
- Ah… Mesmo assim acho-te muito sossegadinho e inofensivo. Sobretudo, para quem queria ser marinheiro e navegar em águas fortes e vivazes… Sabes, ontem à noitinha, enquanto a minha Mema me contava uma história, falei-lhe do medo que sentia sempre que tinha de passar por ti, em especial por causa desses chapéus, chapeletes e bonés que tens na cabeça – e pedi-lhe para tos tirar.
- Não e não! Não lhe peças isso! Por favor, percebe que quero ser teu amigo e para isso preciso de uma cabeça, objectou Macário veementemente.
- Tu, que és um cabide, precisas de uma cabeça? Para quê?
- Sim, claro. Para pensar! E aprender! Senão repara: sem cabeça não saberei fazer contas ou ler histórias ou sequer conversar contigo. Ou pior, brincar contigo. Tudo coisas tão boas! Como posso ser teu amigo se não criarmos laços fortes e afectos eloquentes entre nós, se não nos interessarmos pelas mesmas coisas, brincadeiras e outras coisas do género?
- És capaz de ter razão, concordou o menino. Mas, digo-te, estou confuso: que brincadeiras podem os meninos partilhar com um cabide?
- Todas, confirmou Macário.
E, entusiasmado, continuou:
- Por exemplo, gostas muito de assobiar, não é? Então, quando te apetecer, chegas-te perto e assobias para mim algumas melodias, claro, as tuas preferidas. E eu, ouvindo-te com muita atenção, dir-te-ei se assobias bem, ou então como deves fazer para silvar melhor, como se fosses um canário a soltar os seus cantos melodiosos.
- A sério? Ensinas-me a assobiar? Uauuuu!
- Sobretudo ouço e dou-te muita atenção. Sentas-te junto a mim, naquele banquinho castanho, depois assobias e enches a nossa casinha de música, reafirmou Macário.
- Que bom! E também jogas às cartas comigo? Quem é o mais forte, quem é Macário? E também atiras os meus piões à arena, ali, naquela caixa de cartão, como eu tanto gosto de fazer, procurou saber o menino, que sem dar por isso, já não nutria medo de Macário, o cabide-marinheiro-que-falava-e-que-queria-ser-seu-amigo.
Mema, que a tudo assistira em silêncio, sorriu de felicidade. Afinal, o seu menino-bonito ganhara um amigo para a vida…
Porque sonhamos e somos e queremos, o sol beija todos dos dias o nosso rosto, a nossa alma inflama-se de amor pelos outros, e não desejamos mais esconderijos ou medos. E, um dia, em êxtase, clamamos: deixei de ser louco no dia em que, com as pedras que encontrei no caminho, arrolhei a entrada dos meus esconderijos e afastei os meus medos!

manuel moraes || 13.03.2011

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Naufrágio

Não posso ter o amor
Sem o teu amor.

Como uma abelha
Não tem o mel
Sem a sua colmeia.

É um assunto de casinha…
Ou de afago do que é doce.

Pela manhã,
Um naufrágio de sonhos virá,
E na memória se esfumará: provavelmente.

A destempo,
Assim sentido, sem sentido…



(manuel moraes) || 2011-02-23

maré & sal

Há um ano que me aproximo,
Como uma maré
Que quer ser um oceano
E não consegue.

Talvez a maré
Seja o sal,
Que ao teu corpo se agarra
- à beira-mar -
Quando em mim mergulhas…



(manuel moraes) || 2011-02-23