sexta-feira, 8 de abril de 2016

Até haver noite

Até haver noite
Amo-te como só o amor me faz amar
Esse ar de menina que é todo teu
                                  - Entre tantos
                                              Encantos sem recantos

Até haver noite
Mais nada a não ser a brisa
Leva-nos ao poente - que de tão belo
                                                     Não o pode ser mais

Até haver noite
                      Dois corpos e uma alma
                                                          - De mão dada e a uma só voz
A fitar o céu em busca de uma réstia de sol
                     Vendo a chuva que cai - gota a gota
                                                          E apenas não molha em nós

Até haver noite
Amo-te como só o amor me faz amar
                      A luz que és e que serena passa
                                                           - Ao passar ao luar



03.04.2016

As minhas glórias

O meu contraste não me arrasa
Ao avesso – liberta-me da meação triste e escusa
E faz-me a saudar a outra onde nada existe
A não ser o sorriso que ri por mim

Tenho diante as minhas duas glórias
A maior é ser grande em nada
A menor é ser pequeno em tudo
Uma permite-me tudo – outra leva-me a nada

Não sou de um lugar nem de outro
Saio de onde outros ficaram
Fico de onde outros saíram
Não me toma a maior multidão

Nada de tudo isto me diz nada
A não ser ouvir os ecos da própria voz – da minha
Quando estou em silêncio e abro a janela da casa – da minha
Com vista para o céu – onde me ligo às estrelas e me deixo

01.04.2016

Língua de sabão

[Diz o saboeiro ao povo]
Ofereço-vos sabão para a língua.
Oportunidade única! É de favor!
É que uma língua de sabão lava as palavras
E faz a conversa mais limpa!

[Responde o povo ao saboeiro]
A nossa conversa não é suja - é modesta e honesta.
Anuncia a tua oferta ao patrão de todos nós
Que faz das palavras a mão que mexe no bolso alheio
E desvia a moeda erma para o seu ávido mealheiro.

[Replica o saboeiro ao povo]
A mão do patrão de tudo isto não usa o anel de renúncia.
Tenho diante de mim uma multidão sonambulizada
Almas de olhos cansados por afazeres multiplicados
Cujo sossego é feito de resignação e afirmados pecados.

[Treplica o povo ao saboeiro]
Nas cavernas do apartamento somos empregados e anónimos.
De carteira vazia, com olhos cansados e alma ainda mais cansada
Alinhamos os dias - uns a seguir aos outros - regulares e ordeiros
E na fila da salvação - horas lentas e vazias - seguimos como carneiros.

[Reforça o saboeiro ao povo]
A glória de ser grande não sendo nada não vos pertence.
A mesa - oculta e farta - não é o lugar da gente comum
Apenas os nobres e os célebres se achegam de trajo de gala
E sem despir o fato consolam a vida - açucarando de viver.

[Contesta o povo ao saboeiro]
O patrão de tudo isto quer ser tudo mas não mora na mesma rua.
Dourador de todos os enigmas repete as palavras sujas
E ensina o sentido das coisas que não podem ter solução
A não ser glorificar a obra inútil que dobra a razão.

[Termina o povo dizendo ao saboeiro]
A tua língua de sabão não serve o que queremos ser.
No fundo do copo casual de onde apenas bebemos água
Tudo é ilusão e fantasmagoria e de pouco vale o sonho
Quando o abismo é a certeza maior do medo medonho.

Talvez o caminho não seja sonhar com princesas e fartanças.
Encolhidos na fila de espera à porta da entrada do castelo
Somos os próprios espectadores por licenças despidas de fundo
E o que nós dizemos é que se uns governam o mundo - nós somos o mundo.

07.04.2016